Jefferson Lima em Prosa & Verso
"perceberás a maciez por baixo desta pedra... para uns tosca, para outros, preciosa "
Textos

A Chuva

 

 

A confusão começou no final da tarde. Os vizinhos corriam e avisavam uns aos outros do perigo iminente. Cícero, que estudava na parte da manhã, havia ido buscar a irmã caçula na escola. Carlos já devia estar a caminho de casa, junto com o pai e os demais homens da vizinhança, que retornavam do trabalho. Dona Vera começou a juntar as roupas e as coisas menores para ir adiantando o que já seria inevitável. Não era a primeira vez que isso acontecia e, com certeza, também não seria a última.

 

Passava das dez da noite quando Seu Tião e Dona Vera, ajudados pelos dois filhos e a caçula Helena, terminaram de subir os poucos móveis para o terraço da pequena residência. Chovia copiosamente e o rio, que passava um pouco abaixo, corria o risco de transbordar e invadir tudo o que havia pela frente.

 

O casal não reclamava. Depois de acomodar a todos como possível, Dona Vera, sem lágrimas, agradeceu a Deus por estarem vivos. Estava certa de que não seria fácil limpar a casa depois que a água abaixasse, mesmo assim sabia o quanto fora difícil adquirir aquele imóvel enquanto criavam três filhos e ainda gerava Helena em seu ventre.

 

A família levava uma vida com restrições e foi com a ajuda dos pais de Dona Vera, que moravam na capital do estado, que conseguiram enviar Paloma, a filha mais velha, para estudar em uma faculdade. A moça, inteligente e dedicada, havia conseguido uma boa pontuação no ENEM e conquistado uma vaga na Universidade Federal. O êxito de Paloma servia de exemplo e incentivo para Cícero, que também se esforçava ao máximo para um dia vencer na vida. Helena, ainda uma doce menina de oito anos, já dizia que queria estudar igual a irmã mais velha.

 

Carlos não pensava em ir embora da cidade. Largou os estudos faltando apenas um ano para concluir o ensino médio e trabalhava como operador de máquinas na mesma metalúrgica onde o pai era mecânico. Agora pretendia concluir a etapa para tentar uma promoção na empresa, o que facilitaria muito na sua intenção de casar-se com a amada, com quem namorava desde a adolescência.

 

Naquela noite, Seu Tião dormiu profundo de cansaço. O barulho da chuva fez Helena pegar num sono gostoso e protegido em meio ao calor dos corpos dos pais. Os rapazes adormeceram enquanto praguejavam e se perguntavam até quando levariam aquela vida. Dona Vera não dormiu. Com o terço nas mãos, olhando a chuva, intercedia aos Santos para que protegessem a sua família. Em algum momento ela pensou ter avistado um movimento, uma sombra. Preferiu acreditar ter sido um anjo que ouvia as suas preces.

 

Como já era tarde, lembrou-se de enviar uma mensagem para Paloma, informando a situação e, ao mesmo tempo, tranquilizando-a, pois não queria preocupar a filha e sabia que com a energia elétrica desligada não seria possível recarregar o celular para atualizar as informações.

 

***

 

Era início da madrugada quando entrou em casa. O relógio marcava as primeiras horas do sábado e poderia dormir sem se preocupar com o horário de ir para a faculdade. A sexta havia sido pesada.

 

Após sair do campus, já no final da hora do almoço e debaixo de uma chuva fina e insistente, Paloma precisou se apressar para comer algo e ainda ter algum tempo livre antes de encontrar o seu cliente, marcado para as três da tarde. Sabia de antemão que o acompanharia numa premiação importante no final da tarde, participariam de um coquetel e terminariam num motel ou no próprio quarto de hotel onde ele estaria hospedado.

 

Paloma era uma mulher estonteante. 1,74m de altura, cabelos cacheados, olhos cor-de-mel, boca carnuda e bem delineada, sensual com ou sem batom. Os seios fartos e a proporção entre cintura e quadris chamavam a atenção por onde passava. Além dos atributos físicos, a jovem tinha um quê de ingenuidade na maneira de tratar as pessoas, aquela coisa típica da menina do interior, inocentemente sedutora.

 

Até um mês atrás a estudante ainda morava com os avós maternos, que eram bem legais, no entanto, bastante controladores em relação aos seus horários, cada vez mais imprevisíveis.

 

Querendo ter dinheiro para sair, comprar roupas novas, dentre outras necessidades, e não querendo pedir dinheiro ao pai, que já levava uma vida apertada no interior, pensou em arranjar emprego em alguma loja de shopping. Sabia que seria difícil conciliar os horários das aulas e o trabalho, mas precisava dar um jeito de se capitalizar sem onerar ainda mais a sua família. Paloma conversou com os avós e com os pais antes de se mudar para um pequeno apartamento alugado, convencendo-os que conseguiria bancar o aluguel com o emprego que havia conseguido num escritório ─ uma pequena mentira necessária para não contrariar os velhos, que não precisavam saber o que realmente faria para bancar os seus primeiros meses de independência. Apesar dos protestos dos avós, que gostavam da companhia da neta, porém compreendiam a necessidade de autoafirmação dos jovens, a saída foi tranquila, com a promessa de que não faltariam visitas periódicas para uma conversa, um café ou um almoço eventual.

 

Paloma não era nenhuma menininha boba nem inocente, como o seu rostinho queria mostrar. Já tivera alguns namoradinhos e a sua primeira experiência sexual havia sido ainda na cidade natal. No primeiro ano na metrópole também teve alguns encontros descompromissados com rapazes que conheceu na universidade. Foi uma amiga, já habituada a sair com grandes executivos, que convenceu Paloma a fazer o primeiro programa, garantindo que, num único dia, era possível ganhar mais do que o salário mensal de uma vendedora ou atendente.

 

Mesmo surpreendida e atraída pela possibilidade de altos ganhos, não foi nada fácil se adaptar. Era estranho, e até mesmo incômodo, sair com pessoas totalmente desconhecidas que, em grande parte das vezes, não correspondia em nada ao tipo que realmente atraía a sua atenção. Tinha a sorte de ser tratada com respeito, bom papo e, por que não, com algum carinho, na maioria das ocasiões. Entretanto, nutria o objetivo de sair dessa assim que a sua graduação fosse concluída.

 

A sexta-feira terminava com saldo positivo. Um bom dinheiro, ambiente agradável, parceiro gentil e um ótimo sexo. Só precisava agora de um bom banho para dormir tranquila.

 

Antes de pegar no sono verificou o celular e leu a mensagem da mãe. Ficou preocupada. Conhecia o drama de uma enchente. Pegou a bíblia, que ficava ao lado da cama, sob o abajur, e, abraçada ao livro fechado, rezou por proteção para sua família. Mesmo não se sentindo digna de fazê-lo, agradeceu a Deus porque teria condições financeiras de ajudá-los no recomeço.

 

***

 

O dilúvio lá fora deixava o clima propício para um sono pesado. Eram quase três horas da manhã quando o celular começou a tocar. Pedro ignorou na primeira vez, mas quem estava do outro lado insistiu e, pressentindo que poderia ser algo urgente, preferiu atender. Era o Comandante.

 

Pedro estava na corporação há cinco anos. Realizara um sonho de menino entrando para o Corpo de Bombeiros. Nesta noite estava de folga, no entanto, como sempre acontecia em períodos de chuvas intensas, fora acionado para atuar nas emergências.

 

Levantou-se e, em poucos minutos, já estava uniformizado, a postos para entrar no caminhão que viera para levá-lo ao quartel, onde foi informado das ocorrências da parte baixa da cidade. Ciente da sua missão, preparou o pequeno barco a motor, pegou os coletes salva-vidas, cordas, botes e algumas ferramentas que poderia vir a precisar, pois nunca se sabe o que vai encontrar pela frente em condições tão adversas.

 

Enquanto se encaminhava para um dos locais inundados, Pedro se sentia um privilegiado por morar na parte mais alta da cidade. Enquanto estava a socorrer pessoas, a sua família estava protegida, dormindo na mais perfeita paz sob o som gostoso da chuva que, ao mesmo tempo, trazia a melodia do desespero e da morte para muitas pessoas.

 

No caminho, beijou a medalha de Iansã que trazia no peito, se benzeu com o sinal da cruz e se sentiu protegido, pronto, abençoado e capaz para realizar, da melhor forma o seu papel. Sentia que havia nascido para ajudar, para ser anjo, ser mensageiro da esperança, para devolver o sorriso aos lábios trêmulos de medo.

 

Chegando ao primeiro local afetado pela enchente, Pedro ficou chocado. Há muitos anos a cidade não via uma tragédia com tais proporções, ainda que fosse comum haver alagamentos e prejuízos em períodos de chuva severa. Checou os últimos detalhes, repassou as instruções com o comandante e partiu, junto de outro companheiro, para salvar vidas naquele fim de madrugada que traria um amanhecer sombrio à pequena cidade.

 

Cada minuto era precioso. Muitas casas e comércios submersos, alguns deslizamentos de terra e muita gente desamparada. Foram muitas idas e vindas no pequeno barco, que conseguia transportar até cinco ou seis pessoas para um local seguro. Outra parte da equipe transportaria os desamparados para os abrigos disponibilizados pela prefeitura, que geralmente eram em escolas. Havia, ainda, igrejas e associações que se juntavam na força-tarefa.

 

Amanhecia quando chegaram à residência do Seu Tião e Dona Vera. As águas já estavam da altura da janela da pequena casa. O pai e os filhos acenavam desesperados do terraço, enquanto a mãe, abraçada à caçula, agora chorava com os olhos voltados para o céu.

 

***

 

O prefeito se adiantou em disponibilizar uma escola para servir de abrigo aos desabrigados. Ao ver o estado da praça central e a situação crítica de alguns bairros mais humildes, sua mente maquiavélica começou a arquitetar como poderia capitalizar votos para a sua reeleição através dos reparos que seriam necessários. Claro, precisaria buscar parceiros desde já. Buscou, então, pelas associações de bairro, as paróquias católicas e as igrejas evangélicas para somarem forças nesta hora tão difícil.

 

As associações de bairro sempre tinham, na presidência ou na diretoria, alguém disposto a tentar uma vaga na câmara municipal e, portanto, não negariam ajuda. O apoio das paróquias era garantido, tanto pela força das pastorais, que eram benevolentes por tradição histórica, como pelo fato de serem muito ligadas às próprias associações, com as quais, em alguns locais, compartilhavam a mesma sede. Também havia o fato de que a Igreja Católica andava perdendo fiéis para os Protestantes, então era importante para o pároco local que a igreja prestasse uma boa assistência neste momento.

 

Já os líderes evangélicos distribuíam as suas preocupações em três frentes: a primeira, era prestar solidariedade aos próprios fiéis que haviam sido atingidos pela tragédia. A segunda, ainda mais importante, era a disputa com os católicos, na qual, viam uma oportunidade de arrebanhar fiéis, através da solidariedade para com a dor das famílias, mesmo que não fossem da mesma religião. A terceira tinha a ver com uma disputa interna entre as próprias denominações evangélicas. Uma competição parecida com a existente entre evangélicos e católicos, porém ainda mais acirrada. Atrair um fiel de outra denominação era equivalente a uma transferência de renda. Consistia em aumentar a arrecadação da sua igreja em troca do empobrecimento da outra.

 

Por fora corriam os centros espíritas, os terreiros afros, os pequenos centros culturais, dentre outras entidades, empresas ou mesmo iniciativas anônimas, que se dispunham a ajudar independente da associação ao poder público, mas por enxergar ali a importância de ser útil a um outro ser humano.

 

No palácio, o governador soube da tragédia que atingira várias cidades do estado. Pela manhã, escolheu o seu melhor terno, reuniu os seus assessores, chamou alguns secretários e preparou, detalhadamente, um adequado discurso. Era necessário alertar os prefeitos para declararem estado de calamidade e, ainda, elaborar um decreto estadual, diminuindo assim a oneração dos cofres estaduais e buscando atrair verba federal para a reconstrução das cidades. No final das contas, tentaria capitalizar todas as ações para a sua própria reeleição. Evidentemente que isso seria facilitado com o apoio dos titulares da assembleia legislativa, que logo bateriam na porta do gabinete com pedidos de uma verba para os seus redutos eleitorais. Evidente que não poderia negar.

 

Instruiu à maquiadora para deixar algumas olheiras visíveis para a entrevista.

 

***

 

Pasmo, a tudo observa. Ora feliz pelas demonstrações de fé de alguns, apesar das incertezas e lutas pela sobrevivência, ora decepcionado pela ganância e oportunismo de outros. Em meio a reflexões e preocupações sobre a humanidade, Deus vê o Diabo se aproximar, com aquele sorriso maroto, jeito malandro e olhar desafiador...

 

⸺ De onde vens? ⸺ pergunta o Todo Poderoso.

 

⸺ De rodear a terra e passear por ela, ora! Sempre me perguntas a mesma coisa! Que papo ruim! Por mais que passem os milênios, tu não aprendes um novo jeito de puxar assunto. O que mais quer saber? Não tenho visto o Jó. Já deves saber que ele morreu faz tempo!

 

⸺ Não vou me repetir perguntando por alguém especial, mas o que tens observado em suas andanças?

 

⸺ Sinceramente? ⸺ respondeu o astuto com uma sonora gargalhada. ⸺ Eu poderia mentir, minha especialidade, mas vou ser sincero desta vez. Estou apreciando a paisagem como nunca! Com aquela gente que criastes eu não tenho nenhum trabalho, eles se encarregam do mal sozinhos, não precisam de mim para tripudiarem sobre a miséria alheia. Eles próprios são bons em trair, roubar, matar e arquitetar planos que nunca consegui imaginar. Se tudo permanecer como está, tende a piorar e eu poderei aproveitar minhas férias por milênios...

 

O Diabo não ficou de conversa. Se afastou, deixando um Deus desanimado olhando para a terra.

 

Neste momento, Deus foi interrompido pelas lágrimas de Dona Vera, pela oração tímida de Paloma, pela fé sincera de Pedro e pelas aflições de tantos outros pequeninos. Os anjos traziam a notícia de que chegavam ao paraíso mais almas do que era o normal para esta época do ano.

 

Não ia desistir. Já era hora de fazer a chuva parar.

 

 

Imagem: Gisely Poetry

Jefferson Lima
Enviado por Jefferson Lima em 27/01/2024
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